Catrina; conto

atticus
5 min readJun 20, 2021

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Nada poderia impedir-me.
Tanto que nada nunca impediu-me.
Além de mim mesmo
E minhas fúteis limitações
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Cônscio de que a vida perpassava-lhe os olhos, não conseguia empregar nenhum esforço significativo para qualquer que fosse o assunto. Se achava demasiado fraco e nada que ouvia havia de tirá-lo da cama. Vez ou outra um grande entusiasmo se apossava de seu corpo por alguns breves segundos e o levava a pensar que talvez valesse a pena levantar-se e viver, mas no instante seguinte a depressão se sedimentava novamente e seu corpo caia inerte na cama. Não era de surpreender que nada e nem ninguém se aproximasse, uma vez que, se encontrava tão mal-humorado que nem o mais atenciosos e gentis colegas aguentavam sua senil presença.

Esperava a morte, calmamente. Esperava ela junto a primavera, porque era onde as coisas renasciam e ele esperava renascer junto a ela. A morte era em si um grande milagre da vida, tudo que em vida fora inútil, adquiria novos significados em sua passagem para o inferno. Ele enfim se tornaria algo útil. Mais do que fora em sua miserável vida mundana. Tinha a esperança de tornar-se uma bela e grandiosa árvore na sua próxima reencarnação, na qual ninguém possuiria consciência de sua existência, apenas ele, suas outras árvores e a luz do sol que fundia-se a seu grosso tronco.

Recordava que não estava nem no final nem no começo de sua juventude e sua pele ainda era macia e lisa, de modo que era possível olhá-la sem nenhum pudor ou rancor nos olhos. Passava horas a fio moldando a esperança de algo que o entusiasmasse tão prontamente que talvez pudesse enfim ter algo em que pensar, além dos seus habituais pensamentos mórbidos. Entrava então em uma luta diária secreta em que esculpia seu peito e o deixava lentamente mais sensível e mais forte a vista de terceiros. Não era de se estranhar que sempre estivesse sozinho – ate depois de sua morte – sempre tentava estar um passo à frente de todos. Até hesitar e olhar para aquele belos par de olhos.

Aqui começava a triste história desse triste jovem maltrapilho.

Podia haver em seus olhos mil sóis,
E mesmo assim eu me lançaria
Junto a eles na escuridão do vazio
Havia dolorosa palpitação por ti em meu peito,
Chama-me de teu amor!
Teu ombro amigo, teu amor ou marido.

Naquele tempo talvez não houvesse nenhuma resoluta certeza acerca de nada, somente que o céu era azul e o dia estava quente ou frio. Certezas do que estava dentro do coração era fúteis e mal intencionadas, nada haveriam de ser frivolidades momentâneas de um corpo etéreo e não serviria para nada além de incomodar e afugentar sua paz delicadamente construída. A paixão levava ao conflito e o conflito ao declínio do homem.

E Catrina passava por ele todas as manhãs pelo mesmo caminho da faculdade, trazendo o conflito. Eles haviam conversado duas vezes durante os dois semestres e mesmo com o pouco contato, cultivava ardente paixão que o achatava os lados e fazia suas mãos tremerem debilmente. Era uma pessoa tímida e reservada – se ela não tivesse se dirigido a ele, jamais teria voltado sua afeição a ela. – Não gostava de dias de chuva nem de furacões ou qualquer coisa que abalasse a paz daquela decadente cidade.

Acontece que Catrina havia recebido esse nome justamente por causa do terceiro furacão que mais matou no norte americano. Ela nasceria enquanto ventos arrebentavam os corpos contra as paredes e faziam desabar centenas de toneladas de concreto. Ela viria a ser seu furacão, o arrebataria com violência paixão que o faria esquecer de suas origens e de seus futuros descendentes.

Catrina era alta, cabelos crespos, mas usava tranças a maior parte do tempo. Sua pele era parecida com quando você coloca mais café que leite e acaba sendo inesperado, porque você nunca havia feito isso. Vestia sobretudos, suéteres e coletes de tricô e em seu pescoço sempre havia algum colar. Andava sempre algum grosso exemplar de algum clássico exemplar entre os braços. Ele a achava magnifica. Um raio solar perpassando-o naqueles dias horríveis de chuva e frio debilitante.

Meu pequeno furacão, bagunça-me.
Faça de mim teu poeta e eu farei de ti minha musa.
Ouso manejar qualquer habilidade social
Para ter o mínimo de ti para mim.
Prometo-te a lua e as estrelas que escolheres.
Amo-te.

Não era preciso muito para que seu corpo desmoronasse, possuía fraqueza óssea e mental desde criança. Nenhum médico conseguiu desvendar seu conturbado cérebro e ele tampouco. Cresceu incompreendido, como se seu corpo fosse uma máquina quebrada e ninguém soubesse que parafuso apertar para funcionar corretamente. Ele mesmo havia desistido de tentar consertar-se. Lentamente aceitava que talvez não estivesse quebrado, apenas fora de sincronia com o restante do universo, talvez existissem mais como ele, brinquedos quebrados de deus. Será que ela notaria esse pequeno empecilho?

Fazia alguns dias que pensava em chamá-la para ir à biblioteca, vira que ela devorava vorazmente livro atrás de livros, assim como ele. Chegou de mansinho, enquanto ela lia um livro do Kafka, não se lembrava bem qual, e a cumprimentou. Oi. Aperto de mãos. O que você faz aqui? Ela perguntaria. Estive te vendo, você lê meu livro favorito. Ele diria apontando para o livro nas mãos dela, mas obviamente mentindo. Sério? Eu realmente gosto dele, a escrita e história dele são fascinantes, não acha? Ela sorriria e guardaria o livro. Sim ele era genial, escuta, você não quer sair para tomar um café? Ele se arriscaria pela primeira vez na vida, sua mão suaria e seu coração sairia pela boca. Estaria finalmente vivendo. Sim, é claro. Ela diria, se levantando. E seriam felizes para sempre.

O cérebro dele não operava corretamente, ele gostava de inventar histórias e as misturar a sua realidade monótona, brincar de pintor e colorir sua vida como bem quiser. É mais divertido quando se tem o total controle de todas as ações. Inclusive do frasco de remédio na prateleira, da corda em cima do armário ou da porta aberta para o terraço. O importante era o controle de si próprio. O controle de seus sentimentos, de sua vida e de sua morte.

Epílogo.

Te darei as estrelas.
E se quiseres me tornarei estrela,
Para sempre que olhares para o céu
Conseguir enxergar algum carinho e afeto.

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atticus

escrevi um poema para me lembrar de você quando a memória falhar